sábado, 22 de agosto de 2009

"Os que lutam"


Para o José Morais e Castro

"Há homens que lutam um dia, e são bons;
há homens que lutam por um ano, e são melhores;
há homens que lutam por vários anos, e são muito bons;
há outros que lutam durante toda a vida, esses são imprescindíveis."

(Bertold Brecht)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Foz Côa - Um documento político


Por um Parque Arqueológico do Vale do Côa ao serviço efectivo das populações



Camaradas e amigos,

Em 1996 foi aberto o Parque Arqueológico do Vale do Côa, um serviço descentralizado do Ministério da Cultura, que tinha por funções gerir, proteger, musealizar e organizar para visita pública a arte rupestre do Vale do Côa, classificada como Monumento Nacional em 1997.
Em 1998 esta arte foi integrada na Lista do Património Mundial, tendo o Estado português assumido um compromisso perante a UNESCO de preservar este património. Após a criação do Parque, o governo PS Guterres começou logo pelo não cumprimento das promessas em termos de canalização de verbas comunitárias (ProCôa e AIBT do Côa), que viriam beneficiar toda a região.
A estrutura deste serviço assentou desde o seu início na precariedade das relações de trabalho e na subvalorização dos seus funcionários, levando esta situação à saída de muitos, alguns deles para a emigração.
Foi-se assim assistindo a um gradual desinvestimento que veio a provocar, entre outras gravosas consequências, uma redução na capacidade de acolher todos visitantes que procuram conhecer as gravuras.
O Estado foi-se demitindo do seu dever constitucional de defesa do património e promoção do seu acesso universal, provocando a gradual delegação das suas competências em entidades privadas, com o consequente agravamento do custo dos serviços prestados ao visitante, chegando uma visita através do um privado a custar o triplo do que custaria se fosse através dos serviços do Estado.

A situação começa a ganhar contornos muito mais graves com a eminente inauguração do Museu do Côa em plena época pré-eleitoral. Sucessivas declarações públicas e intenções não verbalizadas confirmam que o Estado central se prepara para delegar as suas competências em favor de clientelas políticas e de interesses económicos, sob a forma de constituição de um Conselho de Administração do Museu e Parque do Côa.
Uma vez mais, o Estado, depois do investimento inicial numa importante infra-estrutura cultural apresta-se a privatizar eventuais lucros, delegando em terceiros a sua responsabilidade de salvaguarda, gestão e promoção de um Património Mundial.
Localmente, PS e PSD têm-se sucedido na tentativa de instrumentalização deste serviço público para os seus pequenos interesses, lutando para ver a quem calha a cadeira.

Atento a esta situação, o nosso Partido vem intervindo desde a descoberta da arte rupestre, tendo sido o primeiro partido político a defender a preservação das gravuras. Mais recentemente, o Parque e o Museu foram visitados pela nossa eurodeputada Ilda Figueiredo, pelo deputado Bernardino Soares e agora pelo nosso Secretário-Geral.
Estas visitas não têm sido inconsequentes. Tomando contacto directamente com os problemas efectivos, os nossos deputados dirigiram questões, tanto ao Parlamento Europeu, como ao Governo Português, através da Assembleia da República.

· Qual o futuro modelo de gestão do Museu e do Parque?
· Qual o quadro de recursos humanos previsto?
· Que entidades vão participar na gestão?
· Está prevista a reabertura da Linha do Douro até Barca d’Alva e o acesso fluvial ao museu?
· Qual o plano de desenvolvimento para promover este investimento?
· Quando será resolvida a precariedade e insuficiência dos recursos humanos do Parque?

Nas vésperas da inauguração do edifício – com a devida pompa e circunstância –, as respostas a estas questões são vazias e ocas. Elas deixam mostrar o rabo de fora das engenharias e arquitecturas dos interesses partidários, que preparam o cozinhado, à custa do bem comum.

Porque sim, é possível uma nova política, também para o Parque Arqueológico do Vale do Côa, propomos:

· Que seja reforçado o investimento do Estado na defesa, estudo e promoção do património regional e que sejam resolvidas as situações de precariedade laboral e valorização profissional, que subsistem desde 1996;

· Que seja implementado um Plano de Desenvolvimento Integrado para o Vale do Côa, que inclua, nomeadamente, a reabertura do troço ferroviário Pocinho/Barca d’Alva, a defesa da agricultura tradicional e do cooperativismo agrícola, para que este património milenar seja colocado ao serviço das populações e não dos interesses privados, que, em detrimento do património, têm como fim único o lucro;

· Que o Parque Arqueológico do Vale do Côa e o Museu do Côa se mantenham sob a gestão directa do Estado central, obrigando-se este ao cumprimento das suas obrigações constitucionais e dos compromissos internacionais.


Por um Parque Arqueológico ao serviço efectivo das populações,
Viva a o PCP!
Viva a CDU!


A Concelhia do PCP de Vila Nova de Foz Côa

sábado, 4 de julho de 2009

Monangambé

Monangambé
(António Jacinto/Rui Mingas)

Naquela roça grande
não tem chuva
é o suor do meu rosto
que rega as plantações;
Naquela roça grande
tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue
feitas seiva.

O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro,
negro da cor do contratado.
Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo?
quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares
"porrada se refilares"?

Quem?
Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer?
- Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande
- ter dinheiro?
- Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:

- "Monangambé..."

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo
e esquecer diluído
nas minhas bebedeiras

- "Monangambé..."

António Jacinto (Poemas, 1961)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Um homem na cidade


Um Homem na Cidade
(José Carlos Ary dos Santos)

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança,
uma roseira entrelaçada,
uma videira de esperança.
Tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem, por força da vontade,
de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua
que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua
que desagua no Rossio.
Eu sou o homem da cidade
que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade,
com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresce na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota
tudo o mau tempo no mar alto.
Eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada,
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada,
um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém,
o malmequer desta cidade
que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também,
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem,
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis, que me quer bem.


sábado, 20 de junho de 2009

Daniel de Sá - "Dueto a uma só voz"

Prenda do amigo e escritor Daniel de Sá, recebida por correio electrónico


Dueto a uma só voz
(A Valesca de Assis, versão gaúcha de Zélia Gattai. Luiz António de Assis Brasil é o seu Jorge Amado.)

O meu amigo José do Carmo Francisco, um poeta de suave sensibilidade, é também jornalista do jornal “Sporting”. Costuma acompanhar por todo o País as equipas jovens do nosso clube, e houve uma vez em que começou assim a crónica de um jogo: “Verde pode ser a cor da paixão. O verde das folhas da videira a anunciarem as uvas e o vinho novo. Os verdes anos da juventude que quer apressar a chegada do amanhã. Verde da paixão, paixão do verde. Das folhas da videira que hão-de secar no Outono. Felizes os que os deuses não amam, porque talvez não morram jovens. Felizes os que, como as folhas da videira, não são jovens para sempre. Porque só a morte faz eterna a juventude.”
Apesar da frequência com que transforma um relato desportivo numa viagem pela poesia, esta introdução parecia ser mais do que um simples efeito literário. E era, de facto.
Dispondo de umas horas livres, resolvera passear pelos arredores da vila onde os juniores do Sporting iriam jogar, e chegara até uma quinta em cujo portão, ao lado de uma casa carregada de velha dignidade, era anunciado vinho do produtor. Mais como consequência do seu espírito curioso do que por desejo real de comprar algum, embora fosse esse o pretexto com que justificaria o que ali ia fazer, puxou a corda da sineta que servia para chamar quem devesse abrir o portão, mas foi à porta da casa que apareceu um homem de bom aspecto, com cerca de quarenta anos, que o mandou entrar por ali, dizendo depois das apresentações: “Minha mulher não está. Foi visitar a irmã.”
Para se dirigirem à adega, passaram pela cozinha. Postas sobre uma cadeira, estavam umas calças escuras, azuis, uma camisa de riscas verticais azuis e brancas e meias num tom levemente mais escuro do que as calças. O dono da casa explicou: “A Lucília saiu enquanto eu estava a descansar um pouco e, como sempre, teve o cuidado de me deixar a roupa preparada, para o caso de eu precisar de sair. É que eu sou um desastre a combinar as cores. Nunca atino... Imagino que esta que vesti para andar por casa deve estar terrível...” Usava camisa castanha, calças cinzentas e peúgas verdes. Em cima da mesa havia um bilhete, para que ele lhe chamou a atenção, no qual estava escrito numa letra muito bem desenhada:
“Meu Amor:
Vou a casa de minha irmã. Talvez me demore.
Beijos.
Lucília”.
Pegou noutra folha do bloco de notas e escreveu, com letra meio gatafunhada:
“Meu Amor
Vou mostrar a quinta a um amigo que veio de Lisboa. Se chegares entretanto, vai ter connosco.
Beijos.
Maurício.”
Guardou o recado de Lucília numa gaveta do louceiro, onde estavam muitos outros, explicando: “Sou incapaz de rasgar um bilhete seu. Mas ela tão-pouco rasga os meus. Quer ver?” E mostrou a gaveta ao lado. O José do Carmo Francisco notou um pormenor curioso: todos os bilhetes dela tinham dois pontos a seguir a “Meu Amor”, mas os dele não.
Havia outro retrato de Lucília na cozinha, e o José do Carmo comentou: “Desculpe que eu lho diga, mas a sua mulher é muito bonita.” O outro sorriu e respondeu: “Um elogio não se desculpa, agradece-se.”
A visita à quinta começou por uma vinha com a inscrição “Quinta de Noé” a indicar-lhe o nome. O desconhecido, de que sabia apenas o nome e o pouco que ia descobrindo, explicou: “Estas videiras produzem um vinho forte, rústico e primitivo. Já trincou por acaso um bacelo? Tem-se a impressão de que o seu sabor permanece neste vinho, que tem a qualidade de excitar todas as papilas. Os enólogos talvez o definissem como um vinho encorpado, mas eu prefiro usar outra linguagem.”
A vinha seguinte era a de Dioniso. “Não sei se lhe parece estranha a forma como escrevi o nome, mas prefiro esta para o deus grego, deixando a outra para os simples mortais. As uvas desta vinha produzem um vinho ligeiramente ácido, menos grosseiro que o de Noé, mas que não absorve demasiado o sabor da madeira dos barris. É um vinho que tem apenas um sabor a vinho, perdendo a memória das uvas ou das cepas de que provém.”
A terceira vinha era a de Baco. “O vinho desta é semelhante ao da vinha de Dioniso, mas mais civilizado, mais suave. Sente-se pouco a sua passagem pela boca, como se ele não servisse para mais do que transportar um calor muito agradável que nos cai no estômago de modo inesperado.”
A última vinha tinha o nome de Lucília. “Olhe, meu amigo, aqui está a minha obra-prima. Estas uvas são delicadas, não devem ser magoadas nem levadas à prensa, por isso são espremidas apenas com as mãos, como que acariciadas. Deixo o mosto fermentar com as cascas, a polpa e o bagaço antes de coar. Depois de decantado, mudo-o. Ofereço este vinho a todas as igrejas ao redor daqui, para a missa. O resto, dou-o aos amigos. Se me permitir a honra, ofereço-lhe também uma garrafa.”
Mudou de tom, passando de um certo entusiasmo para um ar de tristeza. “O senhor é casado, não é? Mas não se admire por eu dizer que não lhe desejo que ame a sua mulher tanto como eu a minha. Vivo numa paixão constante, que me aflige, porque temo sempre que aconteça qualquer coisa de mal à Lucília. Ela esteve doente, muito doente, pouco depois de nos termos casado, e nem imagina o pavor que foi pensar que ela podia faltar-me. Queira Deus que isso não suceda nunca.”
Abriu uma garrafa do vinho com o nome dela, e ofereceu um copo ao José do Carmo, dizendo: “Não pense que eu sinto esta paixão como nos primeiros dias, embora a viva da mesma maneira, ou mais forte ainda. Já viajou de avião, com certeza. Quando ele arranca para levantar voo, e enquanto vai subindo, nós sentimo-nos arrastados por aquela velocidade que é quase uma explosão. Depois, quando atinge a altitude conveniente, estabiliza e nem nos apercebemos de que estamos a voar. Mas estamos, e mais depressa do que durante a subida. Pois os dois momentos da verdadeira paixão são isso mesmo: um primeiro, que é como se fosse uma explosão, e um segundo, o da tranquilidade e da segurança. Talvez não o notemos, mas este momento é mais forte ainda do que o primeiro, apesar de poder durar a vida inteira.”
O vinho era de uma suavidade que não ficaria mal comparar à do rosto de Lucília, mas depressa se percebia ser forte também, talvez de uns catorze graus.
“Devo ser um dos poucos homens a quem a mulher faz versos, veja lá.” Foi a um nicho na parede da adega, onde havia uma sebenta que mostrou, explicando: “É aqui que eu registo o vinho. Não tenho nenhuma contabilidade, mas gosto de saber o que cada vinha produz.” Arrumou a sebenta, cheia de caracteres tão gatafunhados como as letras do bilhete, e pegou numa paca de fotocópias. “Estes são os poemas de Lucília. Gosto de os ler de vez em quando, enquanto bebo um copo do seu vinho, e por isso trago para aqui as fotocópias que faço do caderno em que ela os vai escrevendo. Aliás, ela escreve-os em dois cadernos: um para mim, e outro para si mesma.” Fez uma pausa, talvez à espera de que o José do Carmo lhe pedisse para ouvir alguns poemas, mas este sentiu pudor de lho dizer. No entanto, ofereceu: “Não se importa que eu leia este?... Ela chamou-o ‘Primícias’. Lucília tem uma predilecção especial pelos frutos novos. Os primeiros que amadurecem são sempre para ela, que os espera com a ansiedade de uma criança.”
Enquanto separava a folha das outras, caiu uma, escrita com letra desajeitada igual à da sebenta e do bilhete que deixara à mulher. Ao juntá-la, disse: “Às vezes Lucília falha algum dos poemas. Nunca me deixa ver os rascunhos, mas surripiei-lhe este, copiei-o tal e qual como estava, e voltei a guardá-lo na sua gaveta, que ela não fecha. Ela não escreveu nunca o soneto na sua forma acabada, mas pode ser que aproveite a ideia, porque isso acontece-lhe com frequência. Leva dias sem saber o que fazer a meia dúzia de versos e, de um momento para o outro, mudando tudo, tem um poema pronto e bem feito.”
Na margem da folha havia uma série de rimas anotadas que poderiam servir para as quadras do soneto, e que eram as seguintes: “português, três, mês, vez, porquês, Inês, maduras, alturas, puras, futuras, mercês, curas”. O rascunho, com algumas setas a indicarem a posição prevista para um ou outro verso, estava escrito assim:

“Eu sei que pelos campos me procuras
(Eu) Sei que (em) por toda a parte
e em tudo o que
E em quanto o que for belo
Seja belo me revês
Ó meu Dom Pedro, rei e português,
Que (a) tanto amor amando não descuras!
Eis-me de ti senhora, e eis-me Inês,
És o meu Pedro, sou a tua Inês
Eis-me (sou tua) serva que alçaste nas alturas,
(alçada)
Para sempre a rainha das ternuras
(que tu juras)
Porque o amor (só fala) diz tudo sem porquês.
Para sempre a rainha que tu crês.
A senhora de todas as mercês
Quisera ser por ti sempre donzela
que sempre em mim tu estreasses
Não maculaste, amor, o que tocaste.
Meu corpo de mulher imaculada.
um imaculado de mulher
Num corpo de mulher imaculada
que tanto apagas
E sou, amor... Se fui, sou inda bela
pura e
E pura, como quando me encontraste,
Como quando há dez anos me encontraste
Que o teu amor em mim não mudou nada:
Nada estragaste, amor, do que tocaste.”

Em seguida, deu a sua opinião a respeito de como imaginava que Lucília teria organizado o soneto, se este lhe tivesse agradado, lendo o que escrevera no verso da folha:

“Sei que por toda a parte me procuras,
E em quanto seja belo me revês.
És o meu Pedro, sou a tua Inês
A quem teu grande amor nunca descuras.

Sou tua serva alçada nas alturas,
A senhora de todas as mercês,
Para sempre a rainha que tu crês,
Para sempre a rainha que tu juras.

Quisera ser por ti sempre donzela,
Num corpo de mulher imaculada
Como quando há dez anos me encontraste.

E sou, amor... Se fui, sou pura e bela,
Que o teu amor em mim não mudou nada:
Não maculaste, amor, o que tocaste.”

Depois pegou no soneto que se mostrara disposto a ler, e fê-lo, devagar, sem forçar a emoção nem o tom declamatório:

“Primícias
Sempre esperaste, amor, que eu te beijasse
Como a primeira vez de ser beijado.
E eu sempre espero como se esperasse
Um pedido de amor não declarado.

Sempre esperaste, amor, que eu muito amasse,
Como ninguém, jamais, foi tão amado.
E eu sempre esp’rei que o meu amor bastasse
A quem tão grande amor tem desejado.

Que mais te posso dar, se tudo dou,
Desde as flores colhidas pelos campos
À minh’alma e ao meu corpo quando vou

Nas fugas infantis de estarmos sós?...
E serão sempre como frutos lampos
As carícias trocadas entre nós.”

Ouviu um elogio do José do Carmo Francisco, escolheu então uma garrafa do vinho prometido, e, como se o fizesse distraidamente, embrulhou-a nas folhas em que estavam escritos o soneto falhado e o outro. O José do Carmo fingiu que não reparou, porque entendeu que ele talvez tivesse vontade de que os levasse consigo. Ao despedirem-se, ele disse: “Quando lhe apetecer mais um pouco desse vinho, pode voltar à vontade. Se Lucília não estiver, falaremos dela e eu ler-lhe-ei algum poema.”
O meu amigo agradeceu e despediu-se sem pensar sequer que não levava o garrafão de vinho que dissera querer comprar, e seguiu de imediato para o campo de futebol, ao lado do qual havia um cemitério cujas flores o faziam parecer mais um jardim de sonho do que um lugar de sono eterno. Como ainda tinha algum tempo livre, resolveu entrar e, por não levar um ramo de rosas ou de cravos para oferecer àqueles mortos, apesar de não conhecer nenhum deles rezou-lhes um Pai-Nosso e uma Ave-Maria e percorreu campa a campa com a mesma devoção com que contemplaria cada altar de uma catedral gótica. Numa delas havia o retrato de uma jovem de grande beleza. Vendo o ar de pena com que o José do Carmo deixava perceber o desconcerto que lhe ia na alma, uma senhora de idade avançada, e que logo pareceu muito faladora, explicou que a moça fora professora do liceu e morrera de leucemia. O marido, também professor como ela, abandonara para sempre as aulas quando perdera a esperança na sua cura e teimava em viver como se a mulher fosse ainda viva. Tentara convencê-la de que se tratava de uma anemia teimosa, o que, dizia-se, a rapariga fingira acreditar para que ele não sofresse ainda mais. Pelo aspecto do túmulo, muito bem cuidado, percebia-se que a jovem fora, e seria ainda, muito amada. O meu amigo pensou que conhecera nesse dia duas belas histórias de amor, apesar de esta ser triste e talvez um pouco exagerada pela imaginação da narradora. Só então reparou na legenda, meio tapada por um ramo de flores azuis e amarelas:
“Lucília
Nasceu a 24 de Junho de 1958”

sábado, 6 de junho de 2009

Cantares (Caminante no hay camino)


Cantares
Versos: Antonio Machado e Joan Manuel Serrat
Música: Joan Manuel Serrat

Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre el mar.

Nunca persequí la gloria,
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles,
como pompas de jabón.

Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse...

Nunca perseguí la gloria.

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.

Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.

Caminante no hay camino
sino estelas en la mar...


Hace algún tiempo en ese lugar
donde hoy los bosques se visten de espinos
se oyó la voz de un poeta gritar
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."

Golpe a golpe, verso a verso...

Murió el poeta lejos del hogar.
Le cubre el polvo de un país vecino.
Al alejarse le vieron llorar.
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."

Golpe a golpe, verso a verso...

Cuando el jilguero no puede cantar.
Cuando el poeta es un peregrino,
cuando de nada nos sirve rezar.
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."

Golpe a golpe, verso a verso.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Menina dos meus olhos

Menina dos meus olhos
(José Mário Branco)

Fosse a menina dos meus olhos puta
e fornicara com as televisões
as duas novas da greta e da gruta
e as duas velhas pelas mesmas razões

rectangular e omnipresente nesga
que tem pra tudo as melhores soluções
fosse a menina dos meus olhos vesga
logo lhe dera as suas atenções

ai fosses tu menina dos meus olhos
com teus lacinhos e caracóis
a inocência vai nos entrefolhos
e fica a pátria amada em maus lençóis

entram pelas casas sem ser convidados
tempos de antena e outros futebóis
ficaram todos mais bem informados
opinião pública dos o...rinóis

são cus e mamas a dançar de gatas
mailas gravatas dos seus figurões
as euforias ficam mais baratas
e domesticam-se as excitações

pobre menina ficas à janela
depenicando as tuas distracções
lavas a loiça fazes a barrela
mas essa merda não cede às pressões

os antropófagos das nossas dores
tomaram conta da aldeia global
fazem milhões a converter horrores
em audiências de telejornal

o insuportável torna-se rotina
e a realidade já é virtual
a dor da gente é inesgotável mina
que lhes rentabiliza o capital

as reportagens e as telenovelas
juntam os trapos pezinhos de lã
com a verdade ali a olhar pra elas
histórias da civilização cristã

já não é sangue o líquido vermelho
que nos reserva o dia de amanhã
e tu menina vais-te vendo ao espelho
e sofres dos dois lados do ecrã

noventa e quatro chegou à cidade
noventa e oito está quase a chegar
fez vinte aninhos a nossa liberdade
já é bem tempo de a desvirginar

e se o dinheiro não dá felicidade
televisões bem a puderam dar
talvez que para manter a sanidade
eu chegue ao ponto de ter que cegar

e a menina dos meus olhos há-de
conseguir ver para além do meu olhar.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Ri de quê?

Explicava o guia do Zoo a um grupo de miúdos:

- Este animal é a hiena. Entre outras características, come excrementos e restos de cadáveres de outros animais... e tem relações sexuais cerca de... uma vez por ano.
Ah... e é o único animal selvagem que ri.

Pergunta um dos miúdos:

- Ri de quê?!

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Poema do Homem Novo


Poema do Homem Novo


Niels Armstrong pôs os pés na Lua
e a Humanidade saudou nele
o Homem Novo.
No calendário da História sublinhou-se
com espesso traço o memorável feito.

Tudo nele era novo.
Vestia quinze fatos sobrepostos.
Primeiro, sobre a pele, cobrindo-o de alto a baixo,
um colante poroso de rede tricotada
para ventilação e temperatura próprias.
Logo após, outros fatos, e outros e mais outros,
catorze, no total,
de película de nylon
e borracha sintética.
Envolvendo o conjunto, do tronco até aos pés,
na cabeça e nos braços,
confusíssima trama de canais
para circulação dos fluidos necessários,
da água e do oxigénio.

A cobrir tudo, enfim, como um balão ao vento,
um invólucro soprado de tela de alumínio.
Capacete de rosca, de especial fibra de vidro,
auscultadores e microfones,
e, nas mãos penduradas, tentáculos programados,
luvas com luz nos dedos.

Numa cama de rede, pendurada
da parede do módulo,
na majestade augusta do silêncio,
dormia o Homem Novo a caminho da Lua.
Cá de longe, na Terra, num burburinho ansioso,
bocas de espanto e olhos de humidade,
todos se interpelavam e falavam,
do Homem Novo,
do Homem Novo,
do Homem Novo.

Sobre a Lua, Armstrong pôs finalmente os pés.
Caminhava hesitante e cauteloso,
pé aqui,
pé ali,
as pernas afastadas,
os braços insuflados como balões pneumáticos,
o tronco debruçado sobre o solo.

Lá vai ele.
Lá vai o Homem Novo
medindo e calculando cada passo,
puxando pelo corpo como bloco emperrado.

Mais um passo.
Mais outro.
Num sobre-humano esforço
levanta a mão sapuda e qualquer coisa nela.
Com redobrado alento avança mais um passo,
e a Humanidade inteira,
com o coração pequeno e ressequido,
viu, com os olhos que a terra há-de comer,
o Homem Novo espetar, no chão poeirento da Lua, a bandeira da sua Pátria,
exactamente como faria o Homem Velho.

António Gedeão, in 'Novos Poemas Póstumos'

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Tejo que levas as águas

Tejo que levas as águas
(Manuel da Fonseca/Adriano Correia de Oliveira)

Tejo que levas as águas 

correndo de par em par 

lava a cidade de mágoas 

leva as mágoas para o mar 



Lava-a de crimes espantos 

de roubos, fomes, terrores, 

lava a cidade de quantos 

do ódio fingem amores 



Leva nas águas as grades 

de aço e silêncio forjadas 

deixa soltar-se a verdade 

das bocas amordaçadas 



Lava bancos e empresas 

dos comedores de dinheiro 

que dos salários de tristeza 

arrecadam lucro inteiro 



Lava palácios vivendas 

casebres bairros da lata 

leva negócios e rendas 

que a uns farta e a outros mata 



Tejo que levas as águas 

correndo de par em par 

lava a cidade de mágoas 

leva as mágoas para o mar 



Lava avenidas de vícios 

vielas de amores venais 

lava albergues e hospícios 

cadeias e hospitais 



Afoga empenhos favores 

vãs glórias, ocas palmas 

leva o poder dos senhores 

que compram corpos e almas 



Leva nas águas as grades 
... 



Das camas de amor comprado 

desata abraços de lodo 

rostos corpos destroçados 

lava-os com sal e iodo

Tejo que levas as águas 

correndo de par em par 

lava a cidade de mágoas 

leva as mágoas para o mar. 



segunda-feira, 23 de março de 2009

Quem há-de abrir a porta ao gato...


Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?


(António Gedeão)


Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?

Sempre que pode
foge prá rua
cheira o passeio
e volta pra trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.

Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga, e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego ao colo e acarici-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.

Repito a festa,vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas, e rosna,
rosna deliquescente,abraça-me e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

sexta-feira, 6 de março de 2009

Fado dos contentores

É impressão minha, ou isto é um bocado "fraquinho"?


Fado dos Contentores


Já ninguém parte do Tejo
Para dobrar bojadores
Agora olho e só vejo
Contentores contentores.

E do Martinho Pessoa
Já não veria o vapor
Veria a sua Lisboa
Fechada num contentor.

Por mais que busques defronte
Nem ilhas praias ou flores
Não há mar nem horizonte
Só contentores contentores.

Lisboa não tem paisagem
Já não há navegadores
Nem sol nem sul nem viagem
Só contentores contentores.

Entre o passado e o futuro
Em Lisboa de mil cores
O sonho bate num muro
De contentores contentores.

Por isso vamos cantar
O fado das nossas dores
E com ele derrubar
O muro dos contentores.

[Manuel Alegre, 04.03.2009]

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Ary - Há que dizer-se das coisas

Há que dizer-se das coisas
"O objecto"
(José Carlos Ary dos Santos)

Há que dizer-se das coisas
o somenos que elas são.
Se for um copo é um copo
se for um cão é um cão.
Mas quando o copo se parte
e quando o cão faz ão ão?
Então o copo é um caco
e o cão não passa de um cão.

Quatro cacos são um copo
quatro latidos um cão
Mas se forem de vidraça
e logo forem janela?
Mas se forem de pirraça
e logo forem cadela?
E se o copo for rachado?
E se o cão não tiver dono?
Não é um copo é um gato
não é um cão é um chato
que nos interrompe o sono.

E se o chato não for chato
e apenas cão sem coleira?
E se o copo for de sopa?
Não é um copo é um prato
não é um cão é literato
que anda sem eira nem beira
e não ganha para a roupa.

E se o prato for de merda
E se o literato for de esquerda?
Parte-se o prato que é caco
mata-se o vate que é cão
e escrevemos então
parte prato sape gato
vai-te vate foge cão.
Assim se chamam as coisas
pelos nomes que elas são.