sábado, 20 de junho de 2009

Daniel de Sá - "Dueto a uma só voz"

Prenda do amigo e escritor Daniel de Sá, recebida por correio electrónico


Dueto a uma só voz
(A Valesca de Assis, versão gaúcha de Zélia Gattai. Luiz António de Assis Brasil é o seu Jorge Amado.)

O meu amigo José do Carmo Francisco, um poeta de suave sensibilidade, é também jornalista do jornal “Sporting”. Costuma acompanhar por todo o País as equipas jovens do nosso clube, e houve uma vez em que começou assim a crónica de um jogo: “Verde pode ser a cor da paixão. O verde das folhas da videira a anunciarem as uvas e o vinho novo. Os verdes anos da juventude que quer apressar a chegada do amanhã. Verde da paixão, paixão do verde. Das folhas da videira que hão-de secar no Outono. Felizes os que os deuses não amam, porque talvez não morram jovens. Felizes os que, como as folhas da videira, não são jovens para sempre. Porque só a morte faz eterna a juventude.”
Apesar da frequência com que transforma um relato desportivo numa viagem pela poesia, esta introdução parecia ser mais do que um simples efeito literário. E era, de facto.
Dispondo de umas horas livres, resolvera passear pelos arredores da vila onde os juniores do Sporting iriam jogar, e chegara até uma quinta em cujo portão, ao lado de uma casa carregada de velha dignidade, era anunciado vinho do produtor. Mais como consequência do seu espírito curioso do que por desejo real de comprar algum, embora fosse esse o pretexto com que justificaria o que ali ia fazer, puxou a corda da sineta que servia para chamar quem devesse abrir o portão, mas foi à porta da casa que apareceu um homem de bom aspecto, com cerca de quarenta anos, que o mandou entrar por ali, dizendo depois das apresentações: “Minha mulher não está. Foi visitar a irmã.”
Para se dirigirem à adega, passaram pela cozinha. Postas sobre uma cadeira, estavam umas calças escuras, azuis, uma camisa de riscas verticais azuis e brancas e meias num tom levemente mais escuro do que as calças. O dono da casa explicou: “A Lucília saiu enquanto eu estava a descansar um pouco e, como sempre, teve o cuidado de me deixar a roupa preparada, para o caso de eu precisar de sair. É que eu sou um desastre a combinar as cores. Nunca atino... Imagino que esta que vesti para andar por casa deve estar terrível...” Usava camisa castanha, calças cinzentas e peúgas verdes. Em cima da mesa havia um bilhete, para que ele lhe chamou a atenção, no qual estava escrito numa letra muito bem desenhada:
“Meu Amor:
Vou a casa de minha irmã. Talvez me demore.
Beijos.
Lucília”.
Pegou noutra folha do bloco de notas e escreveu, com letra meio gatafunhada:
“Meu Amor
Vou mostrar a quinta a um amigo que veio de Lisboa. Se chegares entretanto, vai ter connosco.
Beijos.
Maurício.”
Guardou o recado de Lucília numa gaveta do louceiro, onde estavam muitos outros, explicando: “Sou incapaz de rasgar um bilhete seu. Mas ela tão-pouco rasga os meus. Quer ver?” E mostrou a gaveta ao lado. O José do Carmo Francisco notou um pormenor curioso: todos os bilhetes dela tinham dois pontos a seguir a “Meu Amor”, mas os dele não.
Havia outro retrato de Lucília na cozinha, e o José do Carmo comentou: “Desculpe que eu lho diga, mas a sua mulher é muito bonita.” O outro sorriu e respondeu: “Um elogio não se desculpa, agradece-se.”
A visita à quinta começou por uma vinha com a inscrição “Quinta de Noé” a indicar-lhe o nome. O desconhecido, de que sabia apenas o nome e o pouco que ia descobrindo, explicou: “Estas videiras produzem um vinho forte, rústico e primitivo. Já trincou por acaso um bacelo? Tem-se a impressão de que o seu sabor permanece neste vinho, que tem a qualidade de excitar todas as papilas. Os enólogos talvez o definissem como um vinho encorpado, mas eu prefiro usar outra linguagem.”
A vinha seguinte era a de Dioniso. “Não sei se lhe parece estranha a forma como escrevi o nome, mas prefiro esta para o deus grego, deixando a outra para os simples mortais. As uvas desta vinha produzem um vinho ligeiramente ácido, menos grosseiro que o de Noé, mas que não absorve demasiado o sabor da madeira dos barris. É um vinho que tem apenas um sabor a vinho, perdendo a memória das uvas ou das cepas de que provém.”
A terceira vinha era a de Baco. “O vinho desta é semelhante ao da vinha de Dioniso, mas mais civilizado, mais suave. Sente-se pouco a sua passagem pela boca, como se ele não servisse para mais do que transportar um calor muito agradável que nos cai no estômago de modo inesperado.”
A última vinha tinha o nome de Lucília. “Olhe, meu amigo, aqui está a minha obra-prima. Estas uvas são delicadas, não devem ser magoadas nem levadas à prensa, por isso são espremidas apenas com as mãos, como que acariciadas. Deixo o mosto fermentar com as cascas, a polpa e o bagaço antes de coar. Depois de decantado, mudo-o. Ofereço este vinho a todas as igrejas ao redor daqui, para a missa. O resto, dou-o aos amigos. Se me permitir a honra, ofereço-lhe também uma garrafa.”
Mudou de tom, passando de um certo entusiasmo para um ar de tristeza. “O senhor é casado, não é? Mas não se admire por eu dizer que não lhe desejo que ame a sua mulher tanto como eu a minha. Vivo numa paixão constante, que me aflige, porque temo sempre que aconteça qualquer coisa de mal à Lucília. Ela esteve doente, muito doente, pouco depois de nos termos casado, e nem imagina o pavor que foi pensar que ela podia faltar-me. Queira Deus que isso não suceda nunca.”
Abriu uma garrafa do vinho com o nome dela, e ofereceu um copo ao José do Carmo, dizendo: “Não pense que eu sinto esta paixão como nos primeiros dias, embora a viva da mesma maneira, ou mais forte ainda. Já viajou de avião, com certeza. Quando ele arranca para levantar voo, e enquanto vai subindo, nós sentimo-nos arrastados por aquela velocidade que é quase uma explosão. Depois, quando atinge a altitude conveniente, estabiliza e nem nos apercebemos de que estamos a voar. Mas estamos, e mais depressa do que durante a subida. Pois os dois momentos da verdadeira paixão são isso mesmo: um primeiro, que é como se fosse uma explosão, e um segundo, o da tranquilidade e da segurança. Talvez não o notemos, mas este momento é mais forte ainda do que o primeiro, apesar de poder durar a vida inteira.”
O vinho era de uma suavidade que não ficaria mal comparar à do rosto de Lucília, mas depressa se percebia ser forte também, talvez de uns catorze graus.
“Devo ser um dos poucos homens a quem a mulher faz versos, veja lá.” Foi a um nicho na parede da adega, onde havia uma sebenta que mostrou, explicando: “É aqui que eu registo o vinho. Não tenho nenhuma contabilidade, mas gosto de saber o que cada vinha produz.” Arrumou a sebenta, cheia de caracteres tão gatafunhados como as letras do bilhete, e pegou numa paca de fotocópias. “Estes são os poemas de Lucília. Gosto de os ler de vez em quando, enquanto bebo um copo do seu vinho, e por isso trago para aqui as fotocópias que faço do caderno em que ela os vai escrevendo. Aliás, ela escreve-os em dois cadernos: um para mim, e outro para si mesma.” Fez uma pausa, talvez à espera de que o José do Carmo lhe pedisse para ouvir alguns poemas, mas este sentiu pudor de lho dizer. No entanto, ofereceu: “Não se importa que eu leia este?... Ela chamou-o ‘Primícias’. Lucília tem uma predilecção especial pelos frutos novos. Os primeiros que amadurecem são sempre para ela, que os espera com a ansiedade de uma criança.”
Enquanto separava a folha das outras, caiu uma, escrita com letra desajeitada igual à da sebenta e do bilhete que deixara à mulher. Ao juntá-la, disse: “Às vezes Lucília falha algum dos poemas. Nunca me deixa ver os rascunhos, mas surripiei-lhe este, copiei-o tal e qual como estava, e voltei a guardá-lo na sua gaveta, que ela não fecha. Ela não escreveu nunca o soneto na sua forma acabada, mas pode ser que aproveite a ideia, porque isso acontece-lhe com frequência. Leva dias sem saber o que fazer a meia dúzia de versos e, de um momento para o outro, mudando tudo, tem um poema pronto e bem feito.”
Na margem da folha havia uma série de rimas anotadas que poderiam servir para as quadras do soneto, e que eram as seguintes: “português, três, mês, vez, porquês, Inês, maduras, alturas, puras, futuras, mercês, curas”. O rascunho, com algumas setas a indicarem a posição prevista para um ou outro verso, estava escrito assim:

“Eu sei que pelos campos me procuras
(Eu) Sei que (em) por toda a parte
e em tudo o que
E em quanto o que for belo
Seja belo me revês
Ó meu Dom Pedro, rei e português,
Que (a) tanto amor amando não descuras!
Eis-me de ti senhora, e eis-me Inês,
És o meu Pedro, sou a tua Inês
Eis-me (sou tua) serva que alçaste nas alturas,
(alçada)
Para sempre a rainha das ternuras
(que tu juras)
Porque o amor (só fala) diz tudo sem porquês.
Para sempre a rainha que tu crês.
A senhora de todas as mercês
Quisera ser por ti sempre donzela
que sempre em mim tu estreasses
Não maculaste, amor, o que tocaste.
Meu corpo de mulher imaculada.
um imaculado de mulher
Num corpo de mulher imaculada
que tanto apagas
E sou, amor... Se fui, sou inda bela
pura e
E pura, como quando me encontraste,
Como quando há dez anos me encontraste
Que o teu amor em mim não mudou nada:
Nada estragaste, amor, do que tocaste.”

Em seguida, deu a sua opinião a respeito de como imaginava que Lucília teria organizado o soneto, se este lhe tivesse agradado, lendo o que escrevera no verso da folha:

“Sei que por toda a parte me procuras,
E em quanto seja belo me revês.
És o meu Pedro, sou a tua Inês
A quem teu grande amor nunca descuras.

Sou tua serva alçada nas alturas,
A senhora de todas as mercês,
Para sempre a rainha que tu crês,
Para sempre a rainha que tu juras.

Quisera ser por ti sempre donzela,
Num corpo de mulher imaculada
Como quando há dez anos me encontraste.

E sou, amor... Se fui, sou pura e bela,
Que o teu amor em mim não mudou nada:
Não maculaste, amor, o que tocaste.”

Depois pegou no soneto que se mostrara disposto a ler, e fê-lo, devagar, sem forçar a emoção nem o tom declamatório:

“Primícias
Sempre esperaste, amor, que eu te beijasse
Como a primeira vez de ser beijado.
E eu sempre espero como se esperasse
Um pedido de amor não declarado.

Sempre esperaste, amor, que eu muito amasse,
Como ninguém, jamais, foi tão amado.
E eu sempre esp’rei que o meu amor bastasse
A quem tão grande amor tem desejado.

Que mais te posso dar, se tudo dou,
Desde as flores colhidas pelos campos
À minh’alma e ao meu corpo quando vou

Nas fugas infantis de estarmos sós?...
E serão sempre como frutos lampos
As carícias trocadas entre nós.”

Ouviu um elogio do José do Carmo Francisco, escolheu então uma garrafa do vinho prometido, e, como se o fizesse distraidamente, embrulhou-a nas folhas em que estavam escritos o soneto falhado e o outro. O José do Carmo fingiu que não reparou, porque entendeu que ele talvez tivesse vontade de que os levasse consigo. Ao despedirem-se, ele disse: “Quando lhe apetecer mais um pouco desse vinho, pode voltar à vontade. Se Lucília não estiver, falaremos dela e eu ler-lhe-ei algum poema.”
O meu amigo agradeceu e despediu-se sem pensar sequer que não levava o garrafão de vinho que dissera querer comprar, e seguiu de imediato para o campo de futebol, ao lado do qual havia um cemitério cujas flores o faziam parecer mais um jardim de sonho do que um lugar de sono eterno. Como ainda tinha algum tempo livre, resolveu entrar e, por não levar um ramo de rosas ou de cravos para oferecer àqueles mortos, apesar de não conhecer nenhum deles rezou-lhes um Pai-Nosso e uma Ave-Maria e percorreu campa a campa com a mesma devoção com que contemplaria cada altar de uma catedral gótica. Numa delas havia o retrato de uma jovem de grande beleza. Vendo o ar de pena com que o José do Carmo deixava perceber o desconcerto que lhe ia na alma, uma senhora de idade avançada, e que logo pareceu muito faladora, explicou que a moça fora professora do liceu e morrera de leucemia. O marido, também professor como ela, abandonara para sempre as aulas quando perdera a esperança na sua cura e teimava em viver como se a mulher fosse ainda viva. Tentara convencê-la de que se tratava de uma anemia teimosa, o que, dizia-se, a rapariga fingira acreditar para que ele não sofresse ainda mais. Pelo aspecto do túmulo, muito bem cuidado, percebia-se que a jovem fora, e seria ainda, muito amada. O meu amigo pensou que conhecera nesse dia duas belas histórias de amor, apesar de esta ser triste e talvez um pouco exagerada pela imaginação da narradora. Só então reparou na legenda, meio tapada por um ramo de flores azuis e amarelas:
“Lucília
Nasceu a 24 de Junho de 1958”

2 comentários:

Maria disse...

Há palavras que me deixam... sem palavras...
Obrigada por esta partilha, tão especial para mim.

Abraço-te

Anónimo disse...

Tive o prazer de já ter estado com o José do Carmo Francisco, um grande poeta português. Gostei mesmo muito do momento que partilhei, ouvindo-o.

Este caso que ele viveu é belíssimo. Muito belo!

Dou os meus calorosos parabéns a quem tão bem no-lo descreveu.E manifesto a minha alegria por haver quem tão bem vive e ou transmita casos tão impressionantes como este.

A vida, afinal, é digna de ser vivida... e é muito mais bela se continuarmos a ter Poetas que a embelezam e perfumam.

Um abraço.